segunda-feira, 29 de junho de 2009

Passagem - manhã

Cada dia da semana a cloaca divina lança o reciclável ovo da manhã
abrindo margem para a refeição sonolenta.
Cada dia da semana
a família perturba a superfície da infância
e cada cão cada gato cada cisne
canta com os gestos
triviais de um desconcerto -
velho conhecido.

Se somos ou se sabemos
não passa de
uma
meia questão.

Tribos cinéfilas, refeições
sincréticas
o trigo em um
o iôiô de um gozo
vínculos de doença
sirene:
exercemos a expiação
durante o breve alívio
da ducha.

Vida como ser marginal desse
perecível instrumento de calor;
infinita espada
córrego despreendedor
imensa
fatia daquilo que esperamos sem nos darmos conta
sorriso
impossível por invísivel
ser, presente e
alvo, óvulo
das sete pernas, cada qual alimentando-se
dos seus cíclicos frutos
frágeis como Aquiles.

Prisma do encontro
prisma do profano
prisma e culpa
insaciável
reincidente
pequena mentira que arqueia
a clara língua solar.
Arquivo natural, cristal inestimável e sonoro
dos antigos nomes
sem qualquer origem
apenas
inspiração.

E expiração.

Passagem - tarde

Cavam os pés e
pendulam os sinos:
mil e um inventos:
nenhuma trivialidade
esclarecida.

Evidentemente a sede já é larga
para o seio parco ---
a lágrima barata
que se arrasta no meio
de algo metade cara metade coração.

A simetria
do externo
e o inimaginável do eterno
relutantes asas
nas nossas frágeis costas
nos nossos ínterins.

Sete, também
são as passagens pelas
quais acalmo e nutro cada giro
cânion e
cavalo, tão amos quanto cativos
da caixa elementar
invólucro
do desconhecido mundo-eu.
Mundo-nós.

Sementes pequenas dão
as caras
aqui nos meus dedos do pé -
a marcha empilha
as flores serenas
gradualmente descoloridas.

As pétalas são como chamas
fósforo puro da fertilidade.

A criança idiota passeia incerta
trovejando a pisada bamba.
A sua casa é grande
insípida
boa;
cai de joelhos e de repente decide rir.

Passagem - noite

I.

Sonora e cadente, a tempestade é nossa memória de um chuveiro: somos as pálpebras beijadas, somos a falta dos outros, somos a lua quando está numa canção e a estratégia mais leve de uma mente inquieta e feliz: a água é saliva, o vento é um soluço do nosso hálito e das nossas imparcialidades. Completa, a matéria que constituimos é a prévia, a clarividência do passeio enfático e selvagem, a grande cavalgada sem rédeas, a carruagem que desvela o firmamento sedoso e fraterno do veludo.

O relógio é o subúrbio dos acontecimentos.

Não olhamos para frente, apenas para
as mechas e os tremores: grito, coice e trova.

Surjamos
como o sofá vermelho em couro
vermelho em rosa líquida
façamo-nos em facas
em pianos infernais
em pequenas mãos pegando fogo
buscando um motivo sequer para afastar-se
de suas irmãs e de seu copo ambíguo e repleto
de corpos, frugalidades e anseios.

Corramos sem destino. Façamos
o errado, o lastimável
o cru.

Façamos a nós mesmos e sejamos sós.

II.
La Petite Morte

No chão, abríamos as várias portas
comungando da rasteira batalha.
No alto, as estrelas suspiravam tortas
confusas entre corpos e navalhas.
Quantos momentos existiram no início
de tudo, naquela explosão primeira
que não se encontram nesse nosso vício
de guerrear entregando a alma inteira?
Ao conquistar, não ousamos cuidado
no confortável solo de campanha
e crescemos, de estado em estado
até resultar naquele que ganha...
Mas logo se vê: não há vencedores!
Apenas dois mortos, rindo-se em dores...

Passagem - horizonte

A casa é sempre tua, minha flauta macia
meu sopro de ciúme e cotidiano.
Sabes como é simples nosso lar enluarado
mas também como são tristes as impressões
embaçadas sobre o mar.
Então bebamos, então partamos
matemos a mesma coisa do
mesmo jeito e no mesmo lugar apenas
recebendo com outros olhos nosso encanto destoante
e desarrazoado ---
o número dois como eterna busca: antropomórfico palíndromo
grávido de confusões.

A dúvida é apenas uma acha
o fogo é
aquilo que trocamos ao nos entregar.
Quantas escolhas não podem ser
feitas por
razões as mais estúpidas...

O brilho como um simples sonho de espera
perdido nos muitos
corredores
da palavra não.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Milkshake

O milkshake colorido descansou na mesa após
a perigosa viagem sobre a bandeja.
Minha língua roçava os dentes para revelar
algo que atraia
o orvalho teimoso de seus olhos -
não sabia bem ela o que fazer
perguntava mas sem querer ouvir
as respostas tão carnais.
Olhou para baixo e confirmou
o óbito
que eu lhe oferecera
assim como eu havia feito
quando ela me entregou o mesmo final
poucos meses atrás.
Nessa dupla morte, eu sorri enquanto ela corria.
Sorri pois eu já entendia, ela
apenas sonhava.
O apagar de velas...
Sozinho, peguei o milkshake intocado e atirei-o no lixo.
Paguei a conta e pensei se precisava me olhar no espelho:
conclui que não.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Placebo

Inquebrantável como a feiúra

inquebrantável
como as lendas de uma cidade
onde não há carros
onde não há postes

em trevas

é a sede
é o espaço
o silêncio necessário

desse lodo
nos ralos

o escoar infantil da urina
que explora a rua
pequena

o escudo
escuro
de um quieto coração.

As vísceras quentes
são palavras inteiras
conquanto
bastardas
perdidas

como um vestido pelo avesso
um livro sem os verbos
o enigma
da tarde, que espera
mesmo sem jamais querer saber
ou chegar.

Sólido
e carnal
bosque noturno e imenso
eternamente aguardando uma matilha
filha do vento
e quiçá também aquela semente
o verde brilho
que não desejou
ou não sonhou
outrora.

Esmeralda! teus pensamentos minerais
tangem as garras
do travesseiro apertado
contra as têmporas, contra
os vícios

o medo

puro

que não cabe
por não ter origem -
porém
nada o exclui
de existir.

Rarefeito ar gelado
raro efeito da solidão
espinhos residem embotados
e o cacto
floresce em tons
impressionantes e despreocupados.

Entretanto
faz-se mister lembrar
da fome
lembrar do osso que sobra
após a refeição farta
e que queda abaixo da cadeira
servindo ainda
como esperança
como seiva
como instrumento.
O estômago como único sexo. ---


O oco atrás da gargalhada
o incerto que perfaz o vivo
o oráculo que acalma a fera
o corvo que finge ignorar a ceia
o morto que espera soprar suas velas mesmo imaginando

a putrefação

o funil desesperado e vital
do poema

áspero lábio do baldio

peregrino
arquiteto
sereno

compondo os tijolos
elaborando a beleza
na medida que sabe que apesar disso
o mármore é tão frio

e o novo país onde habita
carece de hino, bandeira e inventores.

Descansaria, apenas, a pastilha entre os dentes
e a língua, íntegra, mas sem previsão?

Ou resolverá a rocha seu empasse com o vermelho
e tenra
permitirá a raiz
madura e elementar
atualizar-se diante do macio?

Apenas que não se faça
da verdura
uma árvore nua
apesar da sua
hermética
carapaça em metal...